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Lyrio Santos, Fabricio
Aldeamentos jesuítas e política colonial na Bahia, século XVIII
Revista de História, núm. 156, junio, 2007, pp. 107-128
Universidade de São Paulo
São Paulo, Brasil
Disponível em: http://www.redalyc.org/src/inicio/ArtPdfRed.jsp?iCve=285022046006
Revista de História
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ALDEAMENTOS JESUÍTAS E
POLÍTICA COLONIAL NA BAHIA,
SÉCULO XVIII*
Fabricio Lyrio Santos
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
Resumo
O artigo enfoca a questão dos aldeamentos missionários dirigidos pelos
jesuítas na Bahia durante o período colonial e sua transformação em vilas
na segunda metade do século XVIII. A análise da documentação revela uma
preocupação excessiva do Estado português com o aparato político e
econômico estabelecido pelas ordens religiosas missionárias entre as populações indígenas, ao longo de dois séculos de catequese e domínio.
Palavras-Chave
Jesuítas • Populações Indígenas • Política colonial
Abstract
This article is about the Indian missions organized by the Jesuits in Bahia
during the colonial period and its transformation on villages at the second
half of 18th century. The analysis of the documents indicates a special
attention of the Portuguese government with the economic and political
organization controlled by the missionary orders, along two centuries of
catechesis and domination.
Keywords
Jesuits • Indians • Colonial Policy
*
Este artigo é uma versão ligeiramente modificada de uma comunicação com este mesmo
título apresentada no VIII Simpósio Nacional da Associação Brasileira de História das Religiões e Colóquio do Centenário da Morte de Nina Rodrigues, realizado entre os dias 2 5 de maio de 2006 na Universidade Federal do Maranhão.
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Com certeza, o Estado cristão aprimorado não é o chamado Estado
cristão que admite o cristianismo como seu alicerce, como a religião de Estado, adotando, consequentemente, uma atitude de eliminação perante as outras religiões; é antes o Estado ateu, o Estado democrático, o Estado que relega a religião para o meio, os outros
elementos da sociedade civil.
Karl Marx. A questão judaica.
Em seu clássico Casa Grande e Senzala, Gilberto Freyre defende que os
jesuítas contribuíram para dispersar, através da catequese e dos aldeamentos, a
unidade que eles próprios articulavam através de seu sistema moral e educacional1. O grande erro da empresa inaciana teria sido a segregação religiosa dos índios nas aldeias. O controle sobre as populações indígenas teria levado os jesuítas ao mercantilismo e ao escravagismo, explorando o trabalho indígena em
proveito próprio2. Em Formação do Brasil Contemporâneo, Caio Prado Jr. defende tese semelhante, argumentando que os aldeamentos, traçados a partir dos
interesses específicos defendidos pela Igreja no âmbito da empresa colonial,
segregavam a população indígena e impediam o índio de se tornar elemento ativo
na sociedade, “participante integrado na vida colonial”3. A idéia de que os
aldeamentos teriam se tornado “coletividades enquistadas” no seio da civilização colonial reproduz, sem dúvida, a opinião de Capistrano de Abreu, para quem
“as aldeias tornaram-se não só um estado no estado como uma igreja na igreja”4.
Poderíamos questionar, entretanto, se os aldeamentos não teriam servido
de algum modo para consolidar os interesses do Estado português nas terras
coloniais e expandir as fronteiras da ocupação luso-brasileira, uma vez que a
própria configuração política do Império lusitano apoiava-se, desde o início,
em uma profunda indissociabilidade entre o poder político e o religioso. Num
1
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala. Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. In : Intérpretes do Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro : Nova Aguilar,
2002, vol. 2, p. 174.
2
Ibid., p. 284-285.
3
PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo : Colônia. In : Intérpretes do Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro : Nova Aguilar, 2002, vol. 3, p. 1197.
4
Ibid., p. 1198; ABREU, João Capistrano de. Capítulos de história colonial (1500-1800).
Rio de Janeiro : Sociedade Capistrano de Abreu, 1936, p. 164.
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momento em que o Rei e o Papa convergiam em propósitos e alimentavam a
expectativa de um “êxito compartilhado”, o regime de padroado revelava-se
como expressão formal ou jurídica do reconhecimento de uma perfeita “simbiose do espiritual e do temporal”5. Podemos afirmar que o trabalho missionário
já nasceu comprometido com a ordem política e social da colônia em formação, sem contradizer os interesses políticos ou mercantis mais amplos. Ao criar uma zona privilegiada de contato entre a cultura européia e as diferentes culturas indígenas, os jesuítas possibilitaram o efetivo avanço da colonização
lusitana nas terras americanas.
O início deste trabalho missionário na Bahia concentrou-se ao redor do sítio
fundador da cidade de Salvador, sede do governo geral, fora das paliçadas
construídas por Thomé de Souza em 1549. Os missionários deslocavam-se para
os povoados indígenas existentes nos arredores da cidade na tentativa de converter os índios pela palavra e ensinar-lhes a doutrina6. Os poucos que iam chegando
ao Brasil neste período dividiam-se para dar conta do trabalho missionário na
Bahia e nas demais capitanias. Aos poucos, o sistema de evangelizar aldeias
circunvizinhas às povoações portuguesas se reproduziu nas principais vilas que
iam sendo estabelecidas pelos colonos, constituindo um movimento denominado por Hoornaert de “ciclo missionário litorâneo”7.
Os jesuítas encontraram grandes aliados em Thomé de Souza e Mem de
Sá, primeiro e terceiro governadores gerais8. Logo se tornaria evidente para os
missionários que a intervenção do poder civil constituía um importante aliado
do trabalho destes, na medida em que o castigo aos índios relutantes e hostis
servia de exemplo para que os demais aceitassem prontamente se submeter à
nova fé e civilização propostas9.
5
SILVA, Cândido da Costa e. Os segadores e a messe : o clero oitocentista na Bahia. Salvador : SCI; EDUFBA, 2000, p. 25.
6
LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil, Rio de Janeiro : Instituto Nacional
do Livro, 1938-1950, t. II, p. 46. Sendo ele próprio jesuíta, Leite produziu a “história oficial” da
ordem inaciana em terras brasileiras. Não obstante, conseguiu imprimir um valor insubstituível à
sua obra em função do imenso volume de informações e fontes primárias que reuniu.
7
HOORNAERT, Eduardo et al. História da Igreja no Brasil : ensaio de interpretação a partir
do povo. Primeira época. 4. ed. Petrópolis : Vozes, 1992. Esta obra representa um marco nos
estudos da história da igreja no Brasil por ter sido uma primeira tentativa de síntese ancorada
em uma perspectiva não confessional, embora seus próprios autores fossem ligados à Igreja.
8
LEITE, História da Companhia de Jesus no Brasil, t. II, p. 143-150.
9
EISENBERG, José. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno : encontros
culturais, aventuras teóricas. Belo Horizonte : Editora UFMG, 2000.
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O fracasso da primeira experiência missionária deveu-se, em parte, à própria organização social dos principais grupos indígenas que habitavam o litoral. As guerras intertribais e o sacrifício dos prisioneiros em rituais antropofágicos, tanto quanto os costumes associados ao corpo e à sexualidade, criavam
sérios obstáculos à implantação da religião cristã e dos costumes europeus. Mas
o principal entrave para a realização do trabalho missionário nas aldeias era
sua mobilidade geográfica. Os grupos litorâneos realizavam migrações periódicas buscando a ocupação de áreas consideradas mais férteis e ricas de recursos, quebrando a rotina de catequese :
Se os Padres se contentassem com percorrer as aldeias indígenas, além dos
possíveis riscos, tirariam precário fruto. O que ensinavam um mês, por falta de exercício e de exemplo, estiolaria no outro. Quantas vezes, com o nomadismo intermitente dos Índios, ao voltarem os Padres a uma povoação, que
deixaram animada pouco antes, em lugar dela achavam cinza!10.
A tentativa de superação desta primeira experiência missionária se deu através do plano de catequese elaborado pelo padre Manoel da Nóbrega, no qual
propunha a criação de aldeias ou reduções indígenas onde a população de diferentes povoados nativos seria reunida, pelos próprios missionários (com o auxílio do Estado), objetivando submetê-los a uma rotina permanente de aprendizado dos ensinamentos cristãos : “antecipando o modelo das reducciones
paraguaias, o novo plano dos jesuítas previa que os índios seriam forçados a
viver de acordo com a cultura cristã para subsequentemente serem persuadidos a se converterem à religião de Cristo”11. Como afirma Baêta Neves, por
meio de uma experiência de “socialização prolongada”, a aldeia tornava-se “um
grande projeto pedagógico total”12.
Os aldeamentos visavam, sobretudo, a sedentarização das populações indígenas, propiciando um maior controle sobre suas práticas culturais e possibili-
10
LEITE, História da Companhia de Jesus no Brasil, t. II, p. 42. A opinião de Leite reflete
a visão de seus próprios confrades do século XVI, segundo registrado em suas numerosas
cartas. Ficará evidente depois que a sedentarização forçada dos índios não era garantia de
sua conversão ou civilização.
11
EISENBERG, As missões jesuíticas e o pensamento político moderno, p. 21.
12
NEVES, Luis Felipe Baêta. O Combate dos soldados de Cristo na terra dos papagaios.
Rio de Janeiro : Forense-Universitária, 1978, p. 162.
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tando o rompimento com tudo aquilo que fosse visto pelos missionários como
oposto ao cristianismo : “Para que houvesse uma transformação de costumes
a destribalização se fazia necessária, e, mais do que a destribalização o rompimento com as antigas tradições”13. Como afirma Leite,
(...) a catequese seria uma quimera, enquanto se não organizassem Aldeias, com regime próprio de defesa e autoridade. Dispersos pelo sertão, os Índios nem se purificariam de superstições, nem deixariam de
se guerrear e comer uns aos outros. Era preciso modificar o seu sistema
social e econômico (grifo nosso) 14.
Considerando que a colonização não poderia se dar pela simples exploração econômica ou destruição dos povos nativos, os aldeamentos desempenharam um papel estratégico neste processo : “Aqui no Brasil tratou-se desde o
início de aproveitar o índio, não apenas para obtenção dele, pelo tráfico mercantil, de produtos nativos, ou simplesmente como aliado, mas sim como elemento participante da colonização”15. Como afirma Monteiro, “oferecendo um
contraponto à dizimação deliberada praticada pela maioria dos colonos, os jesuítas buscaram controlar e preservar os índios através de um processo de
transformação que visava regimentar o índio enquanto trabalhador produtivo”16.
A estratégia missionária adotada pelos jesuítas fazia parte de um projeto
mais amplo definido pelo padre Manoel da Nóbrega em um documento que
ficou conhecido como sendo seu “plano de colonização”17. Nóbrega defendia
que a sujeição dos índios ao domínio lusitano era uma condição indispensável
para que se conseguisse convertê-los ao cristianismo, argumentando que o
13
BOM MEIHY, José Carlos Sebe. A presença do Brasil na Companhia de Jesus (15491649). Tese de doutoramento apresentada ao Departamento de História da FFLCH/USP.
São Paulo : USP, 1975, p. 184.
14
LEITE, História da Companhia de Jesus no Brasil, t. II, p. 42-43.
15
PRADO JR., Formação do Brasil contemporâneo, p. 1197.
16
MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra : índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo : Companhia das Letras, 1994, p. 36. Esta posição é defendida também por Maria
Regina Almeida, para quem os aldeamentos foram elementos fundamentais da política colonial ibérica. Cf. ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas : identidade e
cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro : Arquivo Nacional, 2003.
17
LEITE, História da Companhia de Jesus no Brasil, t. II, p. 114.
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consentimento gerado pelo medo não implicava em coerção, sendo um meio
propício para possibilitar o trabalho missionário mediante a persuasão e a catequese18. Para Nóbrega, a Coroa deveria repartir o serviço dos índios entre os
colonos que ajudassem a conquistar e povoar as novas terras, combatendo por
este meio a escravidão ilícita dos brasis e promovendo o enriquecimento dos
próprios colonos e do monarca português. Quanto aos índios, afirmava o primeiro provincial jesuíta da América portuguesa,
A lei, que lhes hão de dar, é defender-lhes [de] comer carne humana e
guerrear sem licença do Governador; fazer-lhes ter uma só mulher, vestirem-se, pois têm muito algodão, ao menos depois de cristãos, tirar-lhes
os feiticeiros, mantê-los em justiça entre si e para com os cristãos; fazêlos viver quietos sem se mudarem para outra parte, se não for para entre
cristãos; tendo terras repartidas que lhes bastem e com êstes Padres da
Companhia para os doutrinarem19.
De certo modo, os aldeamentos serviam também aos colonos como reserva de mão de obra. O trabalho indígena podia ser recrutado em momentos de
maior demanda dos engenhos, no litoral, ou na extração de minérios e condução de boiadas, no sertão. Ao recrutamento deveria corresponder um salário
justo, embora geralmente isto não fosse respeitado. Aos poucos, os colonos passaram a tentar burlar de todas as formas o sistema. Paralelamente seguia-se a
prática, tornada legal, de escravizar índios tomados em guerra justa20.
A partir do final do século XVI os jesuítas procuram trazer índios do “sertão” para as proximidades da cidade e vilas, de modo a compensar os decréscimos populacionais das aldeias21. No entanto, sendo o declínio demográfico um
fator constante dos aldeamentos circunvizinhos às vilas coloniais, os missionários são levados a adentrar o sertão e estabelecer aldeamentos longe dos povoa-
18
EISENBERG, As missões jesuíticas e o pensamento político moderno, p. 89-92.
Carta de Nóbrega ao Provincial da Companhia de Jesus, 8 de maio de 1558. Publicado
em LEITE, Serafim. Novas cartas jesuíticas : de Nóbrega a Vieira. São Paulo : Companhia Editora Nacional, 1940, p. 79.
20
BEOZZO, José Oscar. Leis e regimentos das missões : política indigenista no Brasil. São
Paulo : Loyola, 1983.
19
21
POMPA, Religião como tradução : missionários, Tupi e Tapuia no Brasil colonial. Bauru :
EDUSC, 2003, p. 316.
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dos coloniais, movimento intensificado no período após a ocupação holandesa22. Das aldeias fundadas pelos jesuítas ao redor da cidade de Salvador, apenas a do Espírito Santo, no Rio Joanes, sobreviveu até o século XVIII, tendo
sido transformada em vila, em 1758. Como afirma Leite, o trabalho missionário se alargaria, a partir de então, “para os confins da civilização”23.
Até este momento, o trabalho de catequese e conversão dos povos nativos
havia ficado quase inteiramente a cargo dos jesuítas. A atuação de outras ordens religiosas se daria a partir do início do século XVII, coincidindo com esta
expansão da atividade missionária em direção ao sertão. Para Puntoni, esta
“ocidentalização” da empresa missionária esteve relacionada diretamente com
o fim da ocupação holandesa no nordeste e o interesse da Coroa portuguesa
em estender o raio de ocupação do território colonial24. A ampliação da “fronteira missionária” e a atuação de diferentes ordens religiosas fizeram com que o
Rei criasse em cada uma das principais capitanias uma Junta das Missões
(Maranhão, 1655, Pernambuco, 1681, Bahia, 1702). O objetivo era “dotar o
governo local de um mecanismo descentralizado do poder imperial capaz de
interceder na resolução de conflitos e propor in loco medidas e políticas para
as atividades missionárias e para o processo de ocupação do sertão”25. A idéia
de que teria existido durante o século XVII um “ciclo missionário sertanejo”,
defendida por Hoornaert, é refutada por Puntoni, que enfatiza a estreita subordinação das ordens religiosas às diretrizes traçadas pelo Estado26.
Indo em direção ao sertão, os aldeamentos se chocariam com os criadores
de gado e sertanistas, ao tempo em que grupos indígenas não falantes do tupi
iam sendo contatados. Tais grupos, apelidados genericamente de tapuias, eram
em sua maioria caçadores e coletores semi-nômades, mais avessos às trocas
culturais e mais propensos à resistência armada27. A identificação e reconsti-
22
Ibid., p.318; PUNTONI, Pedro. A guerra dos bárbaros : povos indígenas e a colonização do sertão nordeste do Brasil. São Paulo : EDUSP, 2002, p. 25.
23
LEITE, História da Companhia de Jesus no Brasil, t. V, p. 269.
PUNTONI, A guerra dos bárbaros, p. 71.
25
Ibid., p. 73.
26
Ibid., p. 73, nota 72.
27
PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. De como se obter mão de obra indígena na Bahia entre
os séculos XVI e XVIII. In: Revista de História. São Paulo, n. 129-131, ago-dez/1993 a
ago-dez/1994, p. 194.
24
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tuição etnográfica das dezenas de etnias que foram genericamente retratadas
ou referenciadas como “tapuia” mostra-se extremamente difícil, embora se possa afirmar, com segurança, o predomínio dos grupos Kariri e Payayá no sertão
ao sul do Rio São Francisco28.
Em 1667, segundo Leite, o missionário João de Barros dá notícias promissoras das primeiras aldeias no sertão29. A partir de 1679, de acordo com Pompa, as “aldeias dos tapuias” começam a aparecer nos “catálogos” jesuíticos30.
Aos poucos, em meio a conflitos pela posse das terras e pelo controle sobre a
população indígena aldeada (opondo missionários e colonos), a atividade jesuítica se consolida no sertão da Bahia e nas capitanias de Sergipe, Ilhéus e Porto
Seguro, região missionária articulada em torno do Colégio da Bahia.
Uma época de “reformas”
A partir de 1751 tem início, na região norte da América portuguesa, uma
nova política no tocante aos aldeamentos indígenas, os quais eram vistos como
verdadeiras “empresas” cuja prosperidade provocava nos colonos uma oposição ferrenha às ordens religiosas e à catequese31. O objetivo era conter o “excessivo domínio” que os religiosos supostamente possuíam sobre as terras e as
populações indígenas32. Em 1755 foram promulgadas duas Leis concedendo
plena liberdade aos índios e tirando das mãos dos missionários a autoridade
civil e religiosa sobre os aldeamentos, a qual lhes havia sido outorgada, depois
28
DANTAS, Beatriz G., SAMPAIO, José Augusto L., CARVALHO, Maria Rosário G. de.
Os povos indígenas no Nordeste brasileiro : um esboço histórico. In : CUNHA, Manuela
Carneiro. História dos índios do Brasil. São Paulo : Companhia das Letras, 1992, p. 432. Como
assinala Pompa, a noção de "tapuia" constrói-se associada à de "sertão", delineando um espaço específico da colonização onde a alteridade “bárbara” vai aos poucos sendo incorporada, em posição subalterna, ao universo colonial. Cf. POMPA, Religião como tradução, p. 229.
29
LEITE, História da Companhia de Jesus no Brasil, t. V, p. 282-283.
30
POMPA, Religião como tradução, p. 320.
31
ALDEN, Dauril. Aspectos econômicos da expulsão dos Jesuítas do Brasil : Notícia preliminar. In : KEITH, H. e EDWARDS, S. F. Conflito e continuidade na sociedade brasileira. São Paulo : Civilização Brasileira, 1970.
32
INSTRUÇÕES públicas e secretas para o governador do Estado do Grão Pará e Maranhão
(1751). Publicado por AZEVEDO, João Lúcio de. Os jesuítas no Grão-Pará. Lisboa :
Tavares, 1901, p. 351. Desnecessário dizer que as reformas aqui referidas coincidem com
a ascensão de D. José I ao trono português e a nomeação de Sebastião José de Carvalho e
Melo, futuro Marquês de Pombal, como poderoso ministro de Estado.
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de idas e vindas, pelo Regimento das Missões de 168633. As aldeias indígenas
seriam transformadas em vilas ou povoados, não mais sendo administradas pelas
ordens religiosas. A estas, restaria o trabalho de enfrentar os sertões bravios
em busca de povos nativos na tentativa de conduzi-los pacificamente para junto das povoações coloniais a fim de serem convertidos e doutrinados34. A publicação destas Leis se deu em 1757, ano em que foi também redigido o Diretório das Povoações dos Índios do Pará e Maranhão, propugnando uma série
de medidas destinadas a melhor preparar os índios para assumirem o governo
civil de suas aldeias35. Os objetivos básicos do Diretório eram criar um campesinato indígena integrado economicamente à sociedade colonial e tornar os
índios veículos da colonização portuguesa36.
Estas medidas, estendidas para o conjunto da América portuguesa através
de um “Alvará com força de Ley” datado de 8 de maio de 1758, seriam efetivadas na Bahia através de um conjunto de decretos e ordens régias mandadas
executar por um Tribunal Especial do Conselho Ultramarino instituído por magistrados enviados de Lisboa e presidido pelo Vice-rei D. Marcos de Noronha,
nas matérias civis, e pelo Arcebispo D. José Botelho de Matos, nas matérias
pertinentes à religião37.
Incluindo as capitanias de Ilhéus, Porto Seguro e Sergipe, segundo informações de Caldas, reproduzidas por Vilhena, e de acordo também com os documentos consultados, apenas os aldeamentos jesuítas tornaram-se vilas, sendo onze
33
Cf. BEOZZO, Leis e regimentos das missões.
Lei de 6 de junho de 1755. Arquivo Público da Bahia (APEB). Seção Colonial e Provincial, série Ordens Régias. Livro 60, doc. 82. Também presente em : Collecção dos Breves
Pontifícios e Leys Régias, que forão expedidas, e publicadas desde o anno de 1741 sobre
a liberdade das Pessoas, Bens e Comercio dos Índios do Brasil. O exemplar consultado foi
o da Divisão do Patrimônio Histórico e Cultural (antigo Arquivo Municipal), Salvador,
Bahia. Livro 35.1. Transcrição.
35
Cf. ALMEIDA, Rita Heloísa. O Diretório dos Índios. Brasília : Universidade de Brasília, 1997.
36
DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos. Colonização e relações de
poder no Norte do Brasil na segunda metade do século XVIII. Lisboa : Comissão Nacional
para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000, p. 68.
37
Arquivo Histórico Ultramarino. Documentos manuscritos avulsos da capitania da Bahia.
Documento n. 3629 e anexos. Disponível em CD-ROM : Projeto Resgate de Documentação Histórica.
34
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no total38. Coube a este mesmo Tribunal do Conselho Ultramarino erigir as vilas
de Almeida e Benevente, na capitania do Espírito Santo39. As aldeias administradas por outras Ordens religiosas e por padres seculares não se tornaram vilas neste primeiro momento de aplicação da legislação pombalina, embora ela
própria não fizesse distinção entre as aldeias dos jesuítas e as aldeias das demais Ordens religiosas.
O extenso relatório enviado a Lisboa pelo Tribunal do Conselho Ultramarino em 22 de dezembro de 1758 retrata com detalhes os primeiros encaminhamentos no sentido da adoção das medidas pertinentes à “secularização” das
aldeias40. A primeira questão que veio à baila, ao se reunirem os Conselheiros
com o Vice-rei, foi a respeito do procedimento adequado para se erigir as vilas. O Conde dos Arcos propôs que se fizesse um questionário para levantar
todas as informações necessárias de cada aldeia e que somente após este questionário ser trazido de volta ao Tribunal do Conselho se tomariam as resoluções específicas referentes a cada uma das novas vilas a serem “erigidas”.
Na reunião seguinte foram aprovados “por votos conformes” os questionários e as sugestões que seriam dadas aos ministros designados para erigir as vilas. No entanto, o conselheiro José Mascarenhas argumentou que a diligência
tomaria muito tempo, sendo as viagens pelo sertão difíceis e dispendiosas. Sugeriu que os ministros designados para as aldeias deveriam estabelecer de imediato
as vilas, ao menos interinamente, apresentando depois ao Tribunal do Conselho
o questionário já respondido. Argumentou que “a celeridade é quase sempre madrasta da justiça” e a demora podia trazer inconvenientes maiores, baseando este
seu parecer no fato de que o atual monarca sempre realizava as coisas com admirável brevidade, ao contrário dos anteriores, que gastavam séculos para estabelecer coisas novas. Mascarenhas arrematou suas alegações alertando que, estando
os jesuítas nas aldeias, haveria suspeitas de que o questionário não fosse respondido verdadeiramente, o mesmo não devendo ocorrer com a presença dos novos
párocos, que não deviam ter a mesma ingerência no governo político, “pois de
38
VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia no século XVIII. Bahia : Itapuã, 1969, v. II, p. 460461; APEB, Seção Colonial e Provincial, maço 603, cadernos 14, 15 e 32.
39
APEB, Seção Colonial e Provincial, maço 603, caderno 14.
APEB, Seção Colonial e Provincial, maço 603, caderno 32. O documento se encontra
publicado no volume XXVI dos Anais do Arquivo Público da Bahia, p. 5-45.
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outra forma seria se concorrer para o mesmo abuso que se queria evitar”. O Tribunal, então, deliberou pela imediata secularização da aldeia do Espírito Santo,
que ficava a poucas léguas da cidade, e que “depois de feito este estabelecimento se regularia o das mais aldeias por fórma de que cada Informante que a elas
fosse mandado pudesse logo levar instruções e ir munido da jurisdição necessária para o completo estabelecimento delas” 41.
Embora o próprio Mascarenhas tenha se oferecido para estabelecer a vila
de Abrantes, na aldeia do Espírito Santo, foi designado para a tarefa o juiz de
fora da cidade da Bahia, João Ferreira Bittencourt. A ordem foi dada a ele no
dia 28 de setembro. Em 11 de outubro ele já apresentava ao Tribunal um completo relatório. Por proposta do Conde dos Arcos, passou-se uma provisão para
dar ciência à Câmara de Salvador, pois o estabelecimento da nova vila implicava
o desmembramento do território da cidade. A carta tem a data de 30 de setembro. Sendo passada como ordem régia dada através do Conselho Ultramarino,
reproduz os argumentos expostos nas leis de 6 e 7 de junho de 1755 e no alvará
de 8 de maio de 1758. Diz que o estabelecimento de vilas é o melhor meio de se
civilizarem e poderem instruir os índios a utilizar da agricultura e comércio, e de
mantê-los no pleno gozo da liberdade de suas pessoas, bens e comércio; e que
“por ser presente que a Aldeia do Espírito Santo tem o número de vizinhos e a
extensão preciza para o dito effeito S. Majestade foi servido ordenar ao Bacharel
João Bittencourt estabelecer nela uma vila com o nome Nova Abrantes do Espírito Santo”. O “registre-se” da câmara é datado de 3 de outubro42. Cartas semelhantes deveriam ser enviadas para aviso das respectivas Câmaras das quais as
novas vilas se desmembrariam.
Com relação à conta, interrogatórios e documentos apresentados por
Bittencourt, a dúvida maior dizia respeito à extensão de terras que deveriam
pertencer à vila e aos índios. O Conselho sugeriu ao ministro que procurasse o
Provincial dos jesuítas para que o mesmo apresentasse os títulos de posse das
terras pertencentes aos índios. O Provincial alegou não ter encontrado nenhum
“título” (documento ou certidão) no Colégio. O Conselho, informado, passou
então uma provisão ordenando que o Provincial avisasse aos superiores de todas
41
42
APEB, Seção Colonial e Provincial, maço 603, caderno 32.
Anais do Arquivo Público da Bahia, volume XXVI, p. 1-2.
118
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as residências e missões que apresentassem imediatamente todos os documentos
que fossem solicitados pelos ministros designados para estabelecer as vilas nas
antigas aldeias. Uma outra ordem foi dada ao Provincial para que apresentasse os
livros onde pudessem ser averiguados os bens pertencentes às igrejas das aldeias.
Sem satisfazer inteiramente ao Conselho, o Provincial disse ter expedido ordem
aos superiores das aldeias para que executassem as ordens régias43.
Em 16 de outubro o Tribunal do Conselho exigiu um parecer definitivo de
Bittencourt quanto às terras a serem demarcadas para a nova vila. Bittencourt
advogou a concessão de duas léguas de frente pelo litoral (até o Rio Joanes) e
três de fundo, que parecia ser a única terra que os índios efetivamente tinham
posse. Segundo Bittencourt, não havia títulos que comprovassem a doação de
Mem de Sá de três léguas em quadra, que os índios alegavam a seu favor. Além
disso, as cinco léguas quadradas seriam suficientes para que os 40 casais de
índios da aldeia pudessem se sustentar, sem prejuízo dos moradores situados
do outro lado do Rio Joanes, que haviam apresentado títulos válidos da posse
de suas terras. Sobre umas terras confinantes pertencentes aos jesuítas, pareceu ao ministro ser conveniente tomá-la dos religiosos, pois o gado invadia as
terras indígenas e destruía as lavouras. O Conselho decidiu concordar com o
ministro, menos com respeito à terra dos jesuítas. O Conselheiro Manoel Estevão foi de voto contrário à demarcação das terras, alegando que a prioridade
da posse das terras deveria caber aos índios, e não aos colonos44.
Mantendo interinamente o parecer do ministro, o Tribunal resolveu consultar o Rei acerca das questões sobre as quais não tinha havido consenso. Todas
elas versavam sobre a questão das terras que deviam pertencer aos índios e à
vila, demonstrando ser esta uma questão central no relacionamento entre os
colonos e as populações indígenas naquela região. A aldeia havia sido fundada
no segundo semestre de 1558 pelo P. João Gonçalves e o Ir. Antonio Rodrigues
e não havia nela índios pagãos no século XVIII45. A posse das terras indígenas
estava já assegurada e sua exploração feita por meio de arrendamento, tendo
sido avaliadas como férteis e boas para o cultivo de mandioca, feijão, algodão,
mamona e melancia46. Não se tratava de região fornecedora de açúcar, tabaco, fa-
43
APEB, Seção Colonial e Provincial, maço 603, caderno 32.
Idem.
45
LEITE, História da Companhia de Jesus no Brasil, t. II, p. 53.
44
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119
rinha de mandioca ou madeiras. O estado geral da aldeia era de muita pobreza :
“Todas as casas eram de barro batido, cobertas de palha. Não havia uma só construção de pedra e cal, tijolos e telhas. A igreja e a casa dos padres jesuítas – o hospício – estavam em ruínas”47. Os únicos criadores de gado citados no relatório do
Tribunal do Conselho Ultramarino eram os próprios jesuítas48.
Com o estabelecimento ou “ereção” de Abrantes, define-se o modo como
se havia de proceder nas demais. Provavelmente não houve aplicação fidedigna deste modelo nos diferentes contextos em que as demais aldeias estavam
inseridas, mas o fato de o Conselho acreditar que isto fosse possível revela suas
intenções e seu pensamento em torno dos elementos definidores da nova política
colonial em vigor.
Ainda no final de 1758 foram designados ministros para as demais aldeias, o que consta do relatório de 22 de Dezembro e de documentos avulsos. O
ouvidor e corregedor da comarca da Bahia, Luiz Freire de Veras, ficou encarregado
das aldeias de Santo André, Nossa Senhora das Candeias e Nossa Senhora da
Escada, situadas na Capitania de Ilhéus. Para a aldeia de Nossa Senhora da Conceição, na mesma Capitania, não se designou ministro. O juiz de fora da vila de
Cachoeira, José Gomes Ribeiro, ficou responsável pela aldeia de Natuba, localizada no sertão da Bahia. O ouvidor e corregedor da comarca de Sergipe foi
encarregado das outras três aldeias de índios Kiriri situadas na mesma região, a
saber, Saco dos Morcegos, Canabrava e Geru (localizada na Capitania de Sergipe
d’El Rei). O capitão-mor de Porto Seguro, Antônio da Costa Souza, e o ouvidor
Manoel da Cruz Freire, ficaram responsáveis pelas duas aldeias administradas
pelos jesuítas na região : a aldeia de São João e a aldeia do Espírito Santo. O
ouvidor e corregedor da comarca da capitania do Espírito Santo, Francisco de
Salles Ribeiro, foi também designado pelo Tribunal do Conselho, estabelecido
na Bahia, para transformar em vilas as aldeias de Reritiba e Reis Magos49.
46
TAVARES, Luís Henrique Dias. Aspectos sócio-econômicos das vilas criadas em 1758.
In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia, n. 83, p. 89-93, 1961/1967, p. 90.
47
Ibid., p. 91.
Infelizmente, não consegui descobrir qual foi a resolução final tomada pelo Rei nesta matéria,
mas provavelmente o monarca tenha seguido a deliberação do Conselho e deixado de posse de
suas terras tanto os colonos quanto os jesuítas, pelo menos até a sua expulsão no ano seguinte.
49
APEB, Seção Colonial e Provincial, maço 603, cadernos 11, 15, 32.
48
120
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As instruções dadas a estes ministros indicam certa flexibilização do costume português de modo a compensar o despreparo dos índios para o regime civil.
Foi permitida a eleição de camaristas analfabetos, para que não se tornasse
necessário recorrer a portugueses. Apenas o escrivão, por razões óbvias, tinha
que ser alfabetizado, apto na inteligência e conhecimento dos procedimentos
processuais, devendo-se escolher de preferência um português casado com
índia, caso não houvesse nenhum índio capaz de exercer o cargo. Devia haver
um juiz e três vereadores, um alcaide e um porteiro. O ministro providenciaria
uma casa que servisse de cadeia e outra para as conferências da câmara e do
juiz, não devendo ser usada a casa do pároco. Um pelourinho seria levantado,
em lugar que servisse de praça50.
Foram também enviados questionários para serem preenchidos e devolvidos ao Tribunal do Conselho, como forma de avaliar se a diligência havia sido
realizada a contento ou se convinha que algo fosse mudado. As questões versavam sobre o estado em que se encontrava a aldeia, quantos índios a habitavam,
se eram ricos e tinham boas casas, se falavam a língua portuguesa, se sabiam ler
ou escrever, se havia oficiais mecânicos e de que ofícios, como se alimentavam
e se vestiam, em que camas dormiam, a que nação pertenciam, se exerciam algum tipo de comércio ou possuíam rendimentos, se possuíam gados, individualmente ou em comum, qual o proveito que se poderia esperar com a transformação daquela aldeia em vila51.
O interesse pelo aspecto “econômico” sobressai nestes questionários e também nas questões referentes à atuação dos missionários junto aos índios. O Tribunal demandava informações sobre o tamanho da Igreja e da casa onde até
então tinham residido os missionários, se os índios davam ofertas ou tinham
alguma despesa com os serviços religiosos, se os missionários tiravam algum
rendimento da igreja, se possuíam terras ou gado, se alguém ou algum missionário se servia dos índios como escravos, ou se alguém se aproveitava do
salário ou do rendimento dos índios52.
50
APEB, Seção Colonial e Provincial, maço 603, caderno 15.
APEB, Seção Colonial e Provincial, maço 603, caderno 21.
52
Idem.
51
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121
De certo modo, a resposta a esta excessiva preocupação do governo com o
suposto aparato político e econômico das missões jesuíticas já havia sido dada
pelo próprio conselheiro ultramarino José Mascarenhas Coelho de Mello. Segundo ele, as aldeias eram “cousa pobríssima e de pequeníssima esperança,
porque a terra não he tão inculta e ingrata como os seus habitantes”. Com respeito aos jesuítas, asseverava : “estão no mayor socego e humildade que he possível, bem poderá ser isto afectado, porém nesta capitania não pode haver temor
de que facão a menor perturbação no Estado, pois não tem hoje, partido nem
forças para isso”53.
Párocos ou missionários?
Embora as Leis de 1755 e o Diretório de 1757 aparentemente visassem apenas remover a administração temporal dos missionários sobre os índios aldeados,
guardando-lhes a assistência espiritual, normas específicas indicavam que as aldeias fossem transformadas não apenas em vilas, mas também em paróquias, entregando-se o governo temporal a autoridades civis eleitas pelos próprios índios e o
governo espiritual a párocos do hábito de São Pedro (padres seculares)54.
Em carta dirigida ao Arcebispo da Bahia, datada de 8 de maio de 1758, o
Rei trata diretamente deste assunto, mencionando explicitamente as aldeias
administradas pelos jesuítas. Orienta o Arcebispo a erigir vigararias nas antigas missões, referindo-se aos índios como paroquianos. Diz que a assistência
espiritual concedida pelos missionários aos índios havia sido permitida interinamente, enquanto o clero secular não pudesse prestá-la, mas que, estando informado que a arquidiocese já contava com o suficiente número de párocos, havia por bem dar como terminado o período desta “interina irregularidade”55.
53
Carta ao Secretário de negócios ultramarinos, 22 de dezembro de 1758. Publicado em
ACCIOLI, Ignácio e AMARAL, Braz do. Memórias históricas e políticas da província da
Bahia. Salvador : Imprensa Oficial, 1919-1940, vol. V, p. 556-557.
54
O parágrafo quarto do Diretório encarregava a cristianização dos índios “à exemplar
vigilância do Prelado desta Diocese”, ou seja, outorgava o controle do clero secular sobre
o regular, mas não implicava necessariamente na expulsão dos missionários, desde que estes
se submetessem à autoridade episcopal. Cf. ALMEIDA, O Diretório dos Índios e BEOZZO,
Leis e regimentos das missões.
55
Carta régia dirigida ao Arcebispo da Bahia. In : ACCIOLI, Ignácio e AMARAL, Braz
do. Memórias históricas e políticas da província da Bahia. Salvador : Imprensa Oficial,
1919-1940. Vol. V, p. 561-562.
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Conquanto pudesse ter sido uma medida extremamente hostil aos jesuítas
e ao trabalho missionário, a secularização dos aldeamentos missionários contribuiu para o aumento do número de paróquias no sertão da Bahia, a reunião de
pequenas aldeias prestes a desaparecer, a assistência às populações ao derredor das aldeias, o aumento do poder de intervenção do Arcebispo56.
O clero regular havia sempre se antecipado ao secular em regiões recentemente conquistadas ou por conquistar, recebendo por isto autoridade especial para organização de paróquias nestas regiões57. Apesar das críticas a esta situação, a dificuldade em manter nas regiões de missão um clero secular zeloso e interessado, ao
lado da recusa quanto à formação de um clero nativo (associado a questões políticas e raciais), reforçavam a tendência das ordens regulares para se aproximar do
poder e afirmar seu senso de superioridade organizacional e moral58.
Segundo o cronista José Caeiro, espécie de porta-voz dos jesuítas após a
expulsão, os párocos designados para as antigas aldeias as abandonaram em
pouco tempo59. É bem possível. Sabe-se da pouca assistência religiosa dispensada à gente do sertão. Em 1798 o Cônego Antônio Borges Leal dá informação
de doze freguesias que “ou contavam inteiramente com população indígena ou
ajuntavam a esta alguns portugueses”60. A localização de quase todas coincide
com os antigos aldeamentos jesuítas : cinco no litoral sul (antigas capitanias
de Ilhéus e Porto Seguro), uma no litoral norte, cinco no sertão de baixo e uma
no sertão de cima. Como diz Costa e Silva, estas freguesias assinalavam um
momento de transição, onde não mais existia a missão, “mas longe andava a
freguesia sucedânea de se ombrear com aquelas de larga tradição e mais bem
situadas na geografia”61. A inserção do índio na vida religiosa comum proposta pela legislação pombalina carecia de mais tempo ou empenho. Não obstante,
ainda que paulatinamente, o clero diocesano ia apascentando também este rebanho, sem com isso conseguir evitar que no século XIX o sertão da Bahia reclamasse novamente missionários, atendendo a isto os capuchinhos62.
56
SILVA, Cândido da Costa e. Os segadores e a messe, p. 56-57.
BOXER, Charles. A igreja e a expansão ibérica. Lisboa : Edições 70, 1989, p. 85.
58
Ibid., p. 86-87.
59
CAEIRO, José. Jesuítas do Brasil e da Índia na perseguição do Marquês de Pombal (século XVIII). Bahia : Escola Tipográfica Salesiana, 1936, p. 53-55.
57
60
SILVA, Cândido da Costa e. Os segadores e a messe, p. 76.
Ibid., p. 77.
62
Ibid., p. 81.
61
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123
Os missionários, entretanto, não estariam completamente excluídos da nova
política colonial proposta no século XVIII. A lei de 6 de junho de 1755 determinava que os missionários continuassem atuando junto aos índios que vivessem
dispersos, nos sertões, aldeando-os e instruindo-os na religião cristã, buscando persuadi-los a “descerem” para as povoações indígenas recém transformadas em vilas. No entanto, mesmo junto a estas populações pagãs e remotas caberia ao Governador e Capitão Geral “hum exacto cuidado na instrucção civil dos
referidos Índios, que forem aldeados nos Sertoens, fazendolhes conservar as
liberdades das suas pessoas, bens, e commercio”63.
Projeto de civilização ou antijesuitismo?
No contexto das medidas que visavam a “secularização” das missões se
processa a expulsão definitiva dos jesuítas do Reino e dos domínios ultramarinos lusitanos. De acordo com a própria Lei de 3 de setembro de 1759, a questão dos aldeamentos teria desempenhado um papel central na oposição crescente entre o governo e os missionários64. Ratificando os termos expressos em
um virulento panfleto anti-jesuíta denominado Relação Abreviada da República
que os religiosos jesuítas das Províncias de Portugal e Espanha estabeleceram nos Domínios Ultramarinos das duas Monarquias e da Guerra, que nelas
têm movido e sustentado contra os Exércitos Espanhóis e Portugueses,
publicada em 1757, a Lei responsabilizava os jesuítas pela guerra contra os
guarani das sete missões acusando-os de projetar um verdadeiro império que,
em pouco tempo, seria superior “a todas as forças da Europa unidas”65.
Embora tivessem cumprido um papel político e econômico fundamental
na formação colonial brasileira, os aldeamentos missionários ingressaram na
segunda metade do século XVIII sob suspeita de fazerem parte de um amplo
esquema de oposição ao Estado e enriquecimento ilícito das ordens religiosas.
Os termos em que estavam colocadas as coisas na Relação Abreviada revela-
63
APEB, Colonial e Provincial, Ordens régias, livro 60, doc. 82. Lei de 6 de junho de 1755 (anexo).
COLEÇÃO dos Breves Pontifícios e Leis Régias. Divisão do Patrimônio Histórico e
Cultural (antigo Arquivo Municipal), Salvador, Bahia. Livro 35.1. Transcrição. Publicado
também em ACCIOLI, Ignácio e AMARAL, Braz do. Memórias históricas e políticas da
província da Bahia, vol. V, p. 546-548.
65
Idem.
64
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vam um rompimento definitivo entre os jesuítas e o Estado, antes mesmo que se
decretasse a expulsão. O desfecho deste conflito viria após o atentado sofrido pelo
monarca português em 3 de setembro de 1758, pelo qual os jesuítas seriam igualmente responsabilizados. A partir de então, as alegações quanto à suposta má conduta dos jesuítas nos aldeamentos do novo mundo seriam lugar para acusações
diretas de traição e tentativa de regicídio, radicalizando a postura da Coroa. Os
jesuítas que estavam na Bahia seriam conduzidos para o Reino como criminosos,
reclusos inicialmente nas dependências do Colégio e, depois, no Noviciado da
Jequitaia, situado à beira-mar, de onde partiriam para a prisão e o degredo66.
Buscar entender a atitude do Estado português perante os aldeamentos e as
ordens religiosas no século XVIII como uma simples oposição entre política e religião oblitera o verdadeiro objeto desta disputa. De fato, política e religião não estavam em lados opostos. O próprio aldeamento, tal como definido no Regimento de
1686 e mesmo no Diretório de 1757 apresenta-se como expressão da “simbiose
entre o espiritual e o temporal” que caracterizou a colonização desde o século XVI :
“Embora a lei propugnasse a completa separação entre as esferas temporal e espiritual, o que se pretendia era a atuação conjunta e consensual”67.
Da perspectiva defendida pelos jesuítas, e até então compartilhada pela
Coroa, a conversão seria o mais eficaz instrumento de “civilização” dos costumes e inserção dos gentios no “grêmio da igreja”. Antes que “segregar” ou “dispersar”, os jesuítas reuniam e preparavam as populações indígenas para se inserirem na sociedade colonial, embora esta inserção se desse quase sempre na
forma da prestação de serviços aos moradores e à Coroa e através da participação em expedições militares, sobretudo as famosas “jornadas do sertão” que
encheram o século XVII de confrontos, no interior da Bahia, com os povos qualificados como “tapuias”68.
Em suas Notícias sobre a Capitania da Bahia, de 1759, por exemplo, o
engenheiro José Antonio Caldas argumenta que o acentuado declínio do número
66
Cf. SANTOS, Fabricio Lyrio. Te Deum laudamus : A expulsão dos jesuítas da Bahia
(1758-1763), Salvador, UFBA, 2002 (Dissertação de mestrado), especialmente o capítulo
4. Veja também COSTA, Marcus de Noronha da. A prisão e seqüestro dos padres da Companhia de Jesus na Baía pelo Vice-rei, o VIº Conde dos Arcos. In : Anais do IV Congresso
de História da Bahia, v. 1, Salvador : IGHBa ; Fundação Gregório de Mattos, 2001.
67
68
DOMINGUES, Quando os índios eram vassalos, p. 168.
Cf. PUNTONI, A guerra dos bárbaros.
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125
de missões em toda a capitania da Bahia havia sido causado pelo uso da mão
de obra indígena, pelos sertanistas, nas entradas em busca das minas de ouro,
“por que servindose os viandantes dos Índios por estipêndios, q lhes contribuirão para conduzirem as boyadas de gado de hum e outro gênero, forão ficando diminutas de tal sorte, que chegarão a dezertar Aldeas inteiras” 69.
O suposto “poder político e econômico” acumulado pelos jesuítas a partir
dos aldeamentos, se realmente existia, era um poder exercido em nome do
Estado e sintonizado com os interesses mais amplos da política colonial70. Como
argumentamos no início, a cumplicidade entre o poder “espiritual” e o poder
“temporal” era um elemento fundamental do plano missionário traçado pelos
jesuítas no contexto do padroado ultramarino. Como afirma Maria Regina
Almeida, “os aldeamentos não foram autônomos em relação ao sistema colonial nem tampouco simples espaço cristão construído pelos jesuítas”71. Ao contrário do que afirma Prado Jr., a política pombalina (e, consequentemente, a
expulsão dos jesuítas) não refletia “o interesse geral da colonização portuguesa no Brasil acima dos interesses particulares”, mas, sim, o interesse específico de uma época onde a referida “simbiose do espiritual e do temporal” passou a ser redimensionada72.
Este redimensionamento do papel da religião e do lugar que ela deveria
ocupar na política colonial não deve ser confundido com qualquer tentativa de
abolição do catolicismo. Atendo-nos especificamente à questão dos aldeamentos
indígenas, cabe notar que a “civilização” proposta era vista tanto como um “fim”
a ser buscado em benefício do Estado quanto como um “meio” para se expandir a religião. No Alvará de 8 de maio de 1758, por exemplo, se afirma que a
liberdade concedida aos índios era o “único e adequado meyo” para civilizálos “e attrahillos (...) para o grêmio da Santa Madre Igreja”73. Os interesses
políticos e econômicos em jogo – de resto, presentes desde o início da colonização – não excluíam a necessária conversão dos gentios ao catolicismo. A
69
CALDAS, José Antônio. Noticia geral de toda esta Capitania da Bahia desde o seu descobrimento até o presente ano de 1759. In : Revista do Instituto Histórico e Geográfico da
Bahia, 57, 1ª parte, 1931, p. 36.
70
ALMEIDA, Metamorfoses indígenas, p. 82.
71
Ibid., p. 136.
72
PRADO JR. Formação do Brasil contemporâneo, p. 1199.
73
APEB, Colonial e Provincial, Ordens régias, livro 60, doc. 82.
126
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religião, “relegada para o meio dos outros elementos da sociedade civil”, continuaria a se fazer presente na política colonial, embora não mais com a marcante
presença dos jesuítas.
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